quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Negra tatuada vendendo caju

Entre 1817 e 1831, o olhar de três europeus desvelou para o resto do mundo e para o futuro imagens pitorescas de um país em gestação. Por motivos e tarefas diferentes, o francês Jean-Baptiste Debret, o alemão Johann Moritz Rugendas e o austríaco Thomas Ender, artistas de profissão, viram e registraram, cada um de seu modo, "realidades" do povo brasileiro, já marcado pela miscigenação.
Registraram em pinturas, desenhos e textos que ganharam importância histórica a partir da publicação de um extraordinário número de imagens nos livros Viagem pitoresca ao Brasil, de Rugendas, e Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de Debret.
Ora científica, ora artística, a missão desses artistas em nosso país, mais do que qualquer outra, foi o registro das paisagens, dos semblantes, dos costumes, dos fazeres e das relações entre as etnias, as classes, as nações, o tempo e o espaço. Das aquarelas, esboços e gravuras desses artistas emergem paisagens, homens e mulheres, extremamente reveladoras de uma sociedade que lançou, naquele momento, os alicerces das realidades que permeiam o nosso tempo. É neste sentido que, por meio da arte, olhares reveladores permitem aproximar diferentes aspectos, dimensões e saberes das áreas do conhecimento, fundamentais para a compreensão e construção do conhecimento, da cultura e identidade.
A produção imagética de Rugendas tem como motivos principais os indígenas, seu cotidiano e seu ambiente. Thomas Ender produziu um sem número de paisagens urbanas, protagonizadas pela arquitetura e pela natureza. Nas suas representações, Ender relege homens e mulheres, negros, brancos e indígenas, a meros coadjuvantes de construções pictóricas elaboradas aos moldes europeus. Também para a escola brasileira tem sido um desafio possibilitar o acesso cultural, tendo como critério a equidade entre a cultura européia, afro-brasileira e indígena, resgatando e desbravando fontes e objetos de estudo no acervo preservado nas manifestações que sobrevivem aos novos ritos do mundo contemporâneo.
Em Debret, destacam-se as figuras humanas, especialmente os negros escravos e o branco dominador. por meio de suas aquarelas e gravuras, ele registrou, não como o clique de uma polaroid, mas com a sensibilidade do artista, imagens mais emblemáticas como é da mulher negra, tatuada, vendendo caju.
Quando Debret pintou a aquarela Negra tatuada vendendo caju, o Brasil havia conquistado sua independência há apenas cinco anos. Livre de Portugal, mas preso a uma sociedade escravocrata, a figura da mulher sentada, com olhar distante, nos remete a conotações simbólicas como a perda da referência, a busca da sobrevivência física e espiritual, a expressão inequívoca da inutilidade de sua função como agente efetivo e transformador do processo social. Debret nos dá, nessa imagem, uma mostra do nascedouro de estereótipos que a nós, brasileiros, são atribuídos, nesse caso, a complacência e a indolência, mais propriamente, a preguiça. Como esperado, Debret não foge à regra representacional do neoclássico. Suas figuras, embora nada mitológicas, lembram as formas construídas dos heróis clássicos. As paisagens arquitetônicas e naturais de suas obras mesclam elementos do velho continente ao frescor da pátria recém-nascida.

Jean-Baptiste Debret (1768-1848) iniciou sua vida profissional em Paris. Em 1816 veio ao Brasil com a Missão Artística Francesa. O artista permaneceu aqui até em 1831, dedicando-se à pintura e ao magistério artístico.
Debret retratou em suas telas sobretudo a sociedade brasileira, com forte presença dos escravos. Também foi iniciativa dele a realização da primeira exposição de arte no país em 1829.

Leitura da obra

Nesta e nas muitas cenas urbanas que pintou, Debret dá um especial destaque às figuras das vendedoras ocupando o primeiro plano. Com isso, ficam evidenciadas as feições, os desenhos de seus corpos, os trajes, as mercadorias e, principalmente, a natureza do trabalho que realizam.

As imagens criadas pelo artista são pouco idealizadas; ele procurou manter-se afastado das circunstâncias para descrever em imagens a vida urbana do Rio de Janeiro.

A imagem da mulher sentada, que apóia a cabeça com as mãos, é uma representação recorrente de infelicidade, melancolia e desesperança.


Negra tatuada vendendo caju, Jean-Baptiste Debret,
aquarela sobre papel, 15,5 cm x 21 cm.
Museu da Chácara do Céu, Rio de Janeiro - RJ.

A ênfase naquilo que está acontecendo é uma característica da obra de Debret. Ao destacar as pessoas e a ação, a paisagem e a referência arquitetônica não passam de meros elementos representacionais, sem que se possa estabelecer entre eles alguma relação de continuidade, deixando uma sensação de falta constante.

Ar tristonho e distante, de quem se mantém afastado das circunstâncias de uma vida sem esperança e referências, indiferente a tudo que acontece ao seu redor.

A beleza dos arranjos, a mercadoria na cesta, o ombro descoberto e até a vivacidade da outra vendedora de frutas (ao fundo) revelam e nos fazem crer que tudo que se vê está a venda, inclusive as vendedoras. É a mais evidente expressão da condição de homens e mulheres escravos, chamados de negros de ganho, que perambulavam pelas ruas do Rio de Janeiro, a serviço dos seus senhores ou por ele alugados.




por Maristher Motta e Paulo Cesar Motta Bello.

Nenhum comentário: